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Era Uma Vez em Creta…

 Os primeiros dias da invasão alemã em Creta, segundo as anotações no diário do médico militar grego Théodore Stéphanides.

O alvorecer do dia 20 de maio anuncia um dia brilhante. Às 7:30 da manhã já me levantei e reúno-me com alguns oficiais junto à barraca de campanha que funcionava como refeitório. Conversamos despreocupadamente, à espera de que nos sirvam o café da manhã, quando, de repente, o ruído dos tiros da artilharia antiaérea nos interrompe. Precipitamo-nos para as trincheiras, convencidos de que se tratava de um desses reides vulgares a que nos habituamos. Desta vez, porém, trata-se de outra coisa. Antes de termos consciência da situação, vemos o céu invadido por aviões alemães que parecem surgir de um alçapão mágico. Centenas deles lançam-se em vôo picado, elevam-se novamente, fazem ziguezagues, enquanto cai sobre nós um dilúvio de bombas e rajadas de metralhadoras. Logo a seguir , uma formação de grandes aparelhos prateados voa a baixa altitude, procedentes do sudoeste e em direção a Canéia; como se fossem fantasmas, rasgam o ar com um sussurro que nada se assemelha ao habitual zumbido dos motores; as suas asas são muito longas e estreitas. Compreendo que se trata, na realidade, de planadores – e acaba de ser desencadeada uma ofensiva de grande importância sobre Creta. As granadas da antiaérea explodem em torno dos planadores e das suas escoltas; mas há tal desproporção entre o número dos aviões e nossas nobres baterias que não causamos grandes danos ao inimigo. Vejo, apesar disso, que um dos planadores se inclina para um lado com uma sacudida brusca e vai cair detrás das árvores, quase verticalmente; esse, pelo menos, atingimos. A maioria, porém (uns trinta segundo calculo), continuam a deslizar serenamente em direção a Canéia. Avançam com muito maior lentidão do que um avião normal e imagino o estrago que poderiam causar-lhes alguns dos nossos Hurricanes, se os tivéssemos aqui.

Enquanto observo um bombardeiro alcançado pela nossa defesa antiaérea, oscilando e deixando atrás de si uma coluna de fumaça preta, ouço o Capitão Fenne gritar:

– Olhem, paraquedistas!

As pequenas corolas brancas abrem-se quase no mesmo instante e desaparecem atrás das árvores. Alguns desses paraquedistas devem estar salpicados de castanho e verde, mas a distância é grande demais (felizmente!) para termos certeza. Entre eles há alguns que se distinguem pelo seu maior tamanho e a sua curiosa forma oval. Vim a saber mais tarde que eram paraquedistas tríplices utilizados para transportar morteiros ligeiros, caixotes de munição e material diverso.

Entretanto o sinistro concerto aumenta com novos ruídos: tiros de canhão, de fuzil e de fuzil-metralhadora unem-se ao troar da artilharia antiaérea, as explosões das bombas, ao ronco agudo dos aviões em vôo picado e ao crepitar das suas metralhadoras. O barulho é incrível.

A nossa inquietação aumenta porque não conseguimos saber exatamente qual a situação e faltam-nos instruções para esta eventualidade; quase todos os nossos soldados carecem de armas e ninguém é capaz de calcular, por entre as árvores, a distância que nos separa dos alemães.

Nisto chega um correio dos fuzileiros navais, portador de uma mensagem para o Capitão Longridge: o seu oficial subalterno e todos os homens armados de sua companhia devem unir-se às tropas (não recordo de que unidade) a que fora confiada a missão de improvisar uma frente que detenha a invasão alemã. No que diz respeito ao Capitão Longridge, deve deslocar-se até Suda com aqueles dentre nós que estejam desprovidos de armas e ali esperar novas instruções.

Marchamos para Suda, a cujos arredores chegamos às 11 da manhã. É-nos dada nova ordem: unir-nos ao Comandante Murray, no seu setor, que está localizado em um olival.

Depois de uma trégua, os bombardeiros e os tiros de metralhadora voltam a retumbar mais e melhor, pelas 14:30. O ataque das forças aéreas tem, desta vez, por objetivo a Canéia, que não se encontra longe. Durante várias horas os aviões fazem evoluções incessantemente sobre nossas cabeças, alguns a tão pouca altura que podemos ver, num instante, o rosto do piloto por detrás do pára-brisa da sua carlinga. As balas de metralhadoras silvam por todos os lados, crivando o solo ou cravando-se, com um ruído surdo, nos troncos das árvores.

Fervemos de raiva ao ver a tranquila indolência com que os atacantes realizam sua operação; consideram-na como um jogo infantil e gozam perversamente com ela. Em vez de lançarem as suas bombas e regressarem logo às suas bases, como os italianos na Líbia, demoram nas nossas próprias barbas, traçando círculos no céu…

Entretanto, caído no solo, contra o qual me aperto o mais que posso, fui escavando a terra mole com as mãos e os bicos dos meus sapatos até ficar enterrado no chão.

Cerca das 16:30, produz-se uma brusca trégua e observamos, com alívio, que todos os aviões se dirigem ao norte. Mas, dentro de poucos minutos, o ar estremece com um zumbido surdo; quase imediatamente surge uma nova onda de aviões – e voltamos ao inferno. O ataque prolonga-se por muito tempo e deixa-nos totalmente atordoados, quando, por fim, cai a noite; só então o inimigo nos concede uma trégua verdadeira. Verifico se há vítimas, mas, apesar de tanto estrondo, só dois homens foram feridos ligeiramente com uns arranhões – e não houve um morto sequer.

Principia a clarear e, às 6:30 em ponto, ouvimos ao longe o bem conhecido zumbido que, pouco a pouco, vai crescendo de intensidade até encher todo o céu; e mais uma vez recomeça aquele silvo infernal. O Comandante Murray convida-me para o café da manhã com ele em seu QG. Informam-me que desceram paraquedistas exatamente a oeste de nossa posição, e se dirigem para nós.

Uns cinquenta ou sessenta civis – todos os que possuem uma espingarda – recebem ordens de se manter em guarda e disparar sobre qualquer inimigo que apareça. Mas não surge um só alemão. De repente chega-nos o eco de uma dupla e violenta explosão; dois relâmpagos vermelhos iluminam o céu, enquanto se levanta uma coluna de fumaça negra. Outras explosões se seguem, acompanhadas igualmente de idênticos penachos, até que ficamos isolados a oeste e sudoeste por uma negra e gigantesca muralha de fumaça. Acabam, evidentemente, de ir pelos ares um ou vários depósitos de gasolina e o vento empurra, na nossa direção, a fumaça. Forma a princípio como que um dossel, tão espesso e gigantesco que nos mergulha em uma penumbra. Depois vai baixando até o chão em ondas sucessivas, envolvendo-nos numa névoa nauseante, suficientemente grossa em alguns pontos para deixar a visibilidade reduzida a poucos metros de distância. Penso que devem ter sido assim os últimos dias de Pompéia. Há momentos em que realmente me sinto em perigo de morrer asfixiado, de tal maneira a fumaça se agarra à minha garganta.

Enquanto nos afogamos nesta fumarada, chega um mensageiro a cavalo anunciando-nos que os alemães prosseguem no seu avanço, protegidos pela fumaça, e lançando mais paraquedistas. Devemos estar, portanto, duplamente alertados. Ao chegar a noite, o incêndio não pode ser dominado em toda a parte e alguns depósitos continuam pegando fogo. Os aviões inimigo afastam-se, como na noite anterior, mal cai a noite.

No dia seguinte de manhã, a 22 de maio, o Comandante Murray recebe ordens de conduzir seus homens para Chikalaria, junto ao casario situado no planalto, por detrás de Suda. É um povoado encantador que tem uns 500 habitantes, no flanco norte de uma colina, a dois quilômetros a noroeste de Suda.

Os seus habitantes não se mexeram. A vida desenrola-se ali de maneira quase normal. As mulheres vão à fonte para encher seus cântaros ou dedicam-se às suas tradicionais conversas de comadres. É surpreendente a calma com que estes pequenos povoados suportam o estrondo que sobe do vale. Dir-se-ia considerar isso tudo como as manifestações de um mundo tão diferente do seu que em nada lhes diz respeito. Ou procuram, talvez, como o avestruz, fugir da realidade. A sua aldeia não foi bombardeada ainda; para que antecipar as preocupações? Elas certamente virão a seu tempo.

A primeira noite que passo em Chikalaria é relativamente tranqüila, mas, a 24 de maio, pouco depois de o Sol se levantar, começa a sessão habitual. Um camponês vem correndo me buscar e conta que um civil fora ferido por uma bala de metralhadora. Leva-me a uma gruta calcária situada um pouco mais acima, na colina, onde estão escondidos uns trinta habitantes de Suda: homens, mulheres e crianças, apertados uns contra os outros e vivendo em condições totalmente insalubres. Refugiaram-se ali com medo dos bombardeios e apenas trouxeram algumas mantas e utensílios de cozinha que usam em comum.

O ferido é um homem de sessenta anos. A bala de metralhadora atravessou-lhe o cano de uma bota, mas felizmente a ferida só requer um bom curativo. Além do mais, aceita o seu caso com muita filosofia. Conta que fez as duas guerras dos Balcãs, a guerra de 1914-1918 na Rússia e na Ásia Menor, e que já foi ferido duas vezes. Não parece sentir muito entusiasmo pelo General Metaxas, o ditador grego. Eis, mais ou menos, os termos em que expressa sua opinião:

– Nós, os cretenses, sempre tivemos o costume de andar armados. Cada um de nós possuía uma espingarda e cuidava dela mais do que das meninas dos seus olhos. E esse velho porco do Metaxas, receando que nos revoltássemos contra sua ditadura, decreta, da noite para o dia, que é um crime possuir armas de fogo! Veja agora o senhor o resultado. Atacam-nos em nossa própria terra, nas nossas próprias casas e nem sequer temos com o que nos defender. Se ao menos tivéssemos nossas espingardas, juro-lhe que esses porcos dos alemães já teriam sido empurrados para o mar.

Todos os companheiros aprovaram calorosamente este ato de fé. Mais tarde os oficiais britânicos me confirmaram que os naturais de Creta resistiram ferozmente ao invasor, infringindo-lhes graves perdas, tanto durante a batalha propriamente dita, como depois. Por toda a parte as autoridades britânicas ou gregas foram assediadas por cretenses que reclamavam armas.

Os alemães começaram a lançar grande quantidade de panfletos sobre a ilha. Tive a oportunidade de examinar alguns. Estão redigidos em inglês e grego e neles o Alto-Comando alemão diz que a população local fez crueldades contra suas tropas aerotransportadas, chegando inclusive a matar alguns paraquedistas; acrescenta que a população se expõe a toda espécie de represálias no caso de tais incidente se repetirem. Aos olhos de um alemão, o maior crime da sua vítima é ousar defender-se…

Fonte: Grandes Crônicas da Segunda Guerra – Théodore Stéphanides – Seleções